FÚRIA PRIMITIVA [2024] (FILME)

Heitor Reider Rodrigues Bohn
4 min readJun 4, 2024

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É incrível como a franquia do JOHN WICK (2014-) tem se tornado um parâmetro para filmes de ação da última década, não por ser inovador em termos de luta, mas por ter popularizado e atualizado para minha geração o oriental Gun-Fu, que é esse tipo de ação frenética envolvendo artes marciais e tiros de armas de fogo em movimentos precisos, o que já poderia ser apreciado no final da década de 1980, na cinematografia do chinês John Woo (1946-).

Entretanto, muitos filmes de ação atuais hollywoodianos padecem de um enredo de fundo mais bem elaborado, levando o seu espectador mais à fruição extática em relação às coreografias que se passam em tela, do que se atentar a narrativa social e a crítica política do que está ali sendo representado. O próprio JOHN WICK (2014-) parte de uma vingança pessoal para lá inusitada.

É contra esse tipo de banalização dos filmes de ação que o jovem ator indo-britânico Dev Patel (1990-) dirige o formidável FÚRIA PRIMITIVA, ou no original inglês, MONKEY MAN.

Num projeto cinematográfico que vem sendo cogitado a quase dez anos, temos em FÚRIA PRIMITIVA a síntese de outras histórias e personagens já apresentados nos filmes que Patel atuou: uma Índia marginalizada e desigual como em QUEM QUER SER UM MILIONÁRIO? (2008) e a ideia da jornada de autoconhecimento e afirmação de objetivos do protagonista, como em A LENDA DO CAVALEIRO VERDE (2021). Porém, em FÚRIA PRIMITIVA o que vemos é o dharma de um rapaz que, a despeito de sua vingança pessoal, acaba sendo o esteio para uma discussão muito mais profunda sobre as injustiças indianas, desde a promiscuidade entre religião hinduísta e política convencional à existência de burocracia policial que sustenta desigualdades urbanas.

Parece-nos que fora MAX WEBER em ECONOMIA E SOCIEDADE que tentou fazer uma sociologia compreensiva sobre as singularidades das religiões mundiais, não obstante ter como parâmetro o Ocidente Europeu em seu método comparativo. WEBER tratou em especial do poder de persuasão dos sacerdotes bramânes na religião hinduísta e na possibilidade de eles serem entraves para a modernização da civilização indiana, dado o sistema de castas políticas e a sua função legitimadora dos mesmo. Isto é, os líderes chátrias necessitam do apoio dos bramânes, tal qual o rei europeu precisava da chancela espiritual e moral do clero medieval para dar sustentação ideológica sobre o modo de vida de seus súditos.

WEBER já apontava para uma racionalidade social e política sob o misticismo das entidades que são consideradas “sagradas” nas civilizações orientais e a escolha de Dev Patel em retratar a corrupção que envolve burocracia policial e a influência da tradição de castas sobre a politica parlamentarista (de eleições) na Índia atual, talvez explique o porquê a NETFLIX (1997-) tenha recusado a proposta de lançamento deste longa-metragem direto no seu serviço streaming e esse projeto só ter sido lançado por intermédio do produtor Jordan Peele (1979-) que negociou a continuidade de projeto com a UNIVERSAL STUDIOS (1912-).

É muito interessante entender como Dev Patel se utiliza de uma boa iconografia para apresentar a história do DEUS MACACO indiano, HANUMAN, até mesmo utilizando deste “mito” da cultura hindu para nomear personagens da trama ou fazer paralelo com a história de vida do protagonista, que se apresenta em clubes sujos de boxe à noite, com uma máscara de primata.

HANUMAN, o Deus Macaco na mitologia hindu.

Associado à virtudes como heroísmo, altruísmo e devoção, Hanuman é retratado na mitologia hindu como um ser humanóide musculoso com cabeça de macaco, dotado de superpoderes. O deus hindu é frequentemente retratado com o peito aberto para revelar uma imagem de Rama — a personificação do dharma e a sétima encarnação do deus Vishnu, o deus da preservação e do tempo.

Hanuman desempenha um papel central no Ramayana , um dos maiores épicos antigos já escritos. O Ramayana , atribuído ao sábio Valmiki, é o texto mais antigo referente ao deus macaco. Os estudiosos estimam que foi escrito por volta do século III aC. O épico segue o exilado Príncipe Rama enquanto ele viaja através do oceano para resgatar sua esposa Sita do malvado rei Ravana (rei-demônio). Na batalha contra este rei, Lakshmana, irmão mais novo de Rama, foi gravemente ferido com uma flecha venenosa e sua cura dependia de uma erva medicinal que só crescia no topo do Himalaia. Hanuman então voou até lá, mas o deus não tinha conhecimento científico e não sabia qual erva era adequada para tratar Lakshmana. Ele resolveu trazer toda a montanha, ajudando também a proteger todos os outros combatentes de Rama.

Talvez por isso, quando da COVID-19 o cônsul geral-indiano trouxe para a Fiocruz uma réplica de pequena estátua de Hanuman para simbolizar a parceria Índia-Brasil no tocante a concessão de vacinas Oxford-Astrazeneca em janeiro de 2021 (https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/01/24/hanuman-quem-e-o-deus-macaco-indiano-que-simbolizou-a-entrega-das-vacinas-de-oxford-a-fiocruz.ghtml)

SPOILER: Assim, como Hanuman, o personagem de Dev Patel incorpora a lealdade, autodisciplina e a devoção do deus macaco, enquanto vinga o assassinato de sua mãe, morta por forças policiais que tomaram terras da comunidade pobre em que vivia quando era pequeno, despejo influenciado por orientações de um guru religioso charlatão.

Enfim, FÚRIA PRIMITIVA, mostra-nos que uma história tão clichê como uma jornada de vingança individual quase messiânica (dharma, na linguagem indiana) pode ser fruto de condicionantes sociais e políticos mais complexos e contraditórios, como é a Índia moderna. É um filme de alma mística, mas de base materialista. É um filme de ação, mas antes um longa metragem de concepção crítica sobre as desigualdades econômicas nas periferias colonizadas do mundo.

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Heitor Reider Rodrigues Bohn

Críticas histórico-culturais de um estudante de Ciências Humanas